No coração do mundo, nas entranhas da civilização, envolta por terra, esgoto e sujeira se encontra a Cidade da Poeira.
Carros, fumaça, arranha-céus, a obra prima do novo século!
E no vigésimo sexto andar de um arranha-céu um poeta toma seu último gole de café e pela janela vislumbra as silhuetas monstruosas dos edifícios à sua frente. Então se inclina janela afora e contempla o Negro.
E o Negro faz da Cidade da Poeira sua mais querida das moradas, e é possível vê-lo em qualquer lugar, exibindo timidamente seu manto de retalhos.
Nas esquinas, no trânsito, nos arranha-céus, num esqueleto de sobrado em uma rua transversal do subúrbio, lá está ele, apodrecendo próstatas e rins, fígados e estômagos, mais colorida do que nunca, mais azul do que nunca.
O Negro é uma força que não destrói, absorve. O Negro não interrompe o fluxo de vida dos seres, ele o redireciona para a Vertente Original que é também o Destino Final, de onde todos vêm, para onde todos vão.
O Negro é uma passagem. O Negro é um túnel.
O Negro é colorido, por que quem passa por ele deixa suas impressões.
O Negro é azul, por que o homem que tem passado por lá, só teve melancolia para deixar.
Seus habitantes são os Inertes, por que seu coração é gélido, e um coração gélido não tem anseios.
Os Inertes são homens que perderam a voz. Pouco faz falta para eles de qualquer forma, pois pouco teriam a dizer se tivessem. Alguns deles, entretanto, se comunicam de forma grotesca, porém estes são como Sileno: Consideram-se detentores de uma imensa sabedoria, e só falam a verdade no açoite ou na bebida.
O Inerte, antes de perder a voz, já havia desaprendido a ouvir.
Talvez por isso falar tenha se tornado desnecessário;
Por que falar em um lugar onde ninguém ouve
faz de você
um completo
imbecil.
E ainda assim o Inerte tem medo do silêncio. A Cidade da Poeira é um lugar onde o barulho nunca cessa, por que os Inertes têm medo de ouvir um som que só se ouve no silêncio: A voz interior. Os Inertes não ouvem e não conversam consigo mesmos, por que têm medo do que podem ouvir, têm medo do que podem ter a falar seus corações.
Há quem diga que os Inertes também não podem ver.
Abençoados são eles.
Há quem diga ainda que os Inertes não sentem cheiro algum.
Pois abençoados são eles!
Os Inertes são ótimos atores. Eles conseguem fingir que a vida que têm é a vida que querem. Eles costumam enganar a si mesmos disso. Eles costumam convencer-se que seu estilo de vida dá certo!
Pois os Americanos nunca erram!
Então derrubem-se essas partículas estrangeiras! Ofensas à instituição familiar! Empalem-nos em frente aos fast-foods!
Os Inertes pouco sentem. Aquilo que sentem não são sentimentos, mas crepitações que não podem ser chamadas de sentimentos. São reflexos grotescos.
O Inerte não tem motivações. Ele é movido por uma vontade que não pode ser considerada vontade por ser demasiado rasa, mas algo que pode ser considerado um mero senso comum importado, o que chamamos de Sede de Poder.
A Vida do Inerte é uma vida que nasce na trilha do Negro, e para quem não conhece cor, a vida é um lento suicídio.
A Cidade da Poeira é um lugar onde não se pode fugir do Negro, não se pode fugir do medo, não se pode fugir da insônia.
A Cidade da Poeira nunca dorme.
A noite da Cidade da Poeira é longa, e todos esperam por ela para poderem ter a chance de ser alguém que na realidade não são.
A noite transforma todas as mulheres em Drag Queens e todos os homens em Punks, Motoqueiros, Skinheads e Vampiros.
Punks, Motoqueiros, Skinheads e Vampiros estes, que vagam pela noite provocando-se entre si e almejando um título que não merecem justamente por que o almejam, e isso os enfada de tal forma que se reúnem em banheiros públicos masculinos para externar testosterona e espancar poetas, sem saber que a noite é terreno genuinamente deles.
Depois cruzam a Wall Street de São Paulo sob as nuvens negras de Londres em seus conversíveis rebaixados com os bancos de couro sujos de vômito, e juntos mijam nos postes e cospem na cara dos executivos que eles mesmos são ao amanhecer.
E ainda, antes de amanhecer, abaixam suas calças para senhoras de meia calça que fedem a gato e ensinam francês, por que isso os faz sentir mais livres, os faz sentir mais alternativos, sem saber que na verdade o que estão fazendo é obedecer à força que os torna Inertes.
A noite nunca dá a resposta que nela se procura. A seringa não dá a resposta que nela se procura. A boate, a pista de dança repleta de Drag Queens, a cerca repleta de machos com sua pose de macho segurando sua cerveja de macho conversando coisas de macho repudiando a música, a bebida, o punho no estômago do garoto magro, a foda nas escadas do condomínio, a lâmina que corta os pulsos, nada preenche o vazio que todos sentem.
E a Lua, pobre Lua, através da Poeira que a encobre, observa a cidade com uma tristeza infinita, mas ninguém a observa além do poeta de olho roxo e costelas partidas, ávido por encontrar alguém com quem repartir suas lágrimas.
E eles se reconhecem e trocam conselhos.
E ele chora.
Ele que nasceu pequeno mas de coração grande, ele que nasceu com a obrigação de sofrer pelos outros, ele que nasceu com a visão de maior alcance, ele que nasceu viado e rejeitado, ele que nasceu no lugar errado...
Ele que, mais que todos, deseja sair desta nuvem negra,
Da cidade das fábricas,
Da cidade dos canibais,
Da cidade dos neandertais,
Da cidade dos canos que ejaculam fumaça,
Da cidade das bocas que ejaculam fumaça,
Da cidade dos homens que veneram a Bomba...
Ele que só precisa fugir
Respirar ar puro pela primeira vez
Se movimentar pela primeira vez
Quebrar o Fluxo
Rejeitar a Inércia
Vomitar toda a Poeira e se tornar leve e se mover ao sabor do vento
Se desintegrar no vento
Como um dente-de-leão
Como inúmeras e infindáveis partículas
E conhecer
por fim
a Liberdade...
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