São tempos estranhos.
Sem se preocupar em seguir uma ordem cronológica, passado, presente e futuro se confundem em uma nuvem inconstante de paradoxos:
Homens transformados em ciborgues, mulheres tranformadas em alegorias, bonecas de cera, de plástico, infláveis, máquinas de promoção, máquinas de sexo.
O declínio da virgindade, o surgimento dos hackers de cintos de castidade.
Banalização do eu, banalização do próximo, banalização de todos os conceitos racionais estabelecidos até hoje.
O fim abrupto das barbas que cobriam os peitos, o fim dos pêlos nos peitos, o fim da fumaça inebriante, o fim das cangas e das bijuterias.
O início de uma contra-cultura sem cultura, rebeldes sem causa que em nada evocam James Dean, o ódio e a revolta como uma justificativa e um fim em si mesmo.
Porra!
Se tem pelo que lutar, temos muito pelo que lutar, mas não há fogo. Não há paixão.
Não há tesão.
Há uma luxúria vaga.
Há rotina. Há costume. Há mediocridade. Há milhares de da Silva que acordam cinco horas da manhã todo o dia e engolem o seu ódio pelo capitalismo que os obriga a empregar todo o seu suor para ter um carro melhor que o do da Silva vizinho.
Há milhares de da Silva bombas-relógio, prontos para ter seu dia de fúria, para voltarem a sua rotina um dia depois como se nada tivesse acontecido.
Há milhares de da Silva que criam seus filhos para serem iguais a eles.
Camisa e suspensório
Gravate e gel
Olhos sem fogo
Sexo sem fogo. Sexo apolíneo. Sexo a dois. Sexo a três, a quatro, mas nunca com todos. Sexo como imposição, como costume, não como ritual dionisíaco.
Um cara que parece uma moça, uma ereção equivocada e despudorada, mais nudez do que entre os homens da Grécia, menos inocência e amor do que entre os homens da Grécia, menos democracia, menos pensamento, menos dialética, menos Grécia.
Homens que violam rituais dionisíacos, homens com mágoas demais, homens que ainda copulam com garrafas de cerveja, estuprando a si mesmo repetidamente pela noite metropolitana buscando consolo no vômito negro espalhado pelo ar da Cidade da Poeira.
Pulmões negros e fígados destroçados. Corpos que não respondem mais aos anseios humanos. Cérebros sem necessidades intelectuais.
O declínio dos valores, o declínio da família, o declínio do livro, o crepúsculo do cérebro...
Barulho. O crepúsculo da voz interior. O crepúsculo da auto-avaliação.
Homens que espancam travestis, que bêbados, levaram para cama.
A androgenização cada vez mais promovida e os sexos se confundindo
A promoção cada vez mais promovida
Testas e anúncios
Anúncios e anúncios
Línguas e anúncios
Anúncios
Propaganda é a alma do negócio.
Negócio. Mais carvão aí!
Fuligem em pulmões e crianças mortas.
Crianças que não sabem o que é comida. Crianças que não sabem o que é roupa. Crianças que não sabem o que é ter pais.
Crianças que não sabem o que é escola, crianças que não sabem o que é Shakespeare, crianças que usam calças coloridas e não sabem o que raios é "Kurt Cobain".
Calças coladas ao corpo, o declínio do rock, o declínio do dopping, o declínio do rock, o declínio do rock. Olhos sem fogo, bocas sem fogo, mãos abertas acariciando o Sistema, por que ele funciona. Mãos abertas tapando olhos sem fogo para só assim o Sistema funcionar.
E o povo abre as pernas
O favelado abre as pernas
O ladrão abre as pernas
O cego, o nordestino, o gaúcho, todos nós e todos eles.
E não, o Sistema não é dócil. Ele entra fundo e o grito de dor que vem, não é um grito, é um sussurro em consentimento. Consentimento de esposa submissa. Consentimento de escravo.
E quando sai da gente, sai levando muito mais que nossa dignidade. Leva nosso sangue. Leva nosso fogo.
Mas dá um doce, estão está bom.
E a mão que dá o doce tem uma gêmea que segura uma corrente, e assim o palhaço se transforma em carcereiro;
Ambas as mãos acabam em braços podres que acabam em um rosto sorridente;
O sorriso é de escárnio, o sorriso é de gozo. E seus dentes são separados, e seus cabelos tingidos de sangue.
Mulheres que encontraram seu espaço num mundo em que os abençoados são aqueles que nascem destinados a ter barba.
E ventres continuam tendo relações estreitas com fogões. Ventres e fogões, ventres e tanques, ventres e ventres e "sim senhores".
Ventres apertados por espartilhos, ventres, ventres...
Ventres que crescem de repente, cedo demais.
Uma vida que perde seu brilho para dar à luz uma outra. Um futuro brilhante, um leque imenso de possibilidades e novas sensações a serem provadas que desaparecem abruptamente;
Por que o senso fálico dominante rejeita o látex. E assim se explica.
Ventres e fábricas de robôs.
Robôs que são homens que não sentem gosto, não sentem prazer, não sentem porra nenhuma para estampar uma maldita capa de revista e servir de exemplo para que o Ciclo
nunca se quebre. E ele não vai se quebrar tão cedo, por que funciona. Por que Ciclos assim só se quebram com fogo, e o fogo já nos foi roubado há muito tempo.
Só nos resta odiar o Ciclo. Ódio esse que é engolido.
E o ódio que engolimos não some. O ódio que eu, você, o da Silva engole não é digerido, vira um câncer, e o câncer consome, debilita.
E quando as pessoas notarem que há algo errado com esse aperto no coração que todos sentimos de manhã na iminência de viver, é que as coisas vão mudar.
Os punhos vão se levantar, o amor vai ser feito na rua, o sangue vai ferver, e sim, ele vai ser derramado.
E o mundo vai ser purificado
E esse vórtex de podridão não vai mais existir
E esses tempos estranhos que se estendem desde os primórdios da história humana vão acabar
E o pessimismo não vai fazer sentido
Eu não vou fazer sentido
E à despeito disso,
Espero ansiosamente por esse dia.
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