Numa dessas tardes escuras, ventosas, melancólicas e suicidas, onde tudo que se vê é feito de pó e sujeira, andava por aí, em um subúrbio qualquer de uma cidade pequena, um jovem homem.
Garoto sujo, ele era, ainda que parecesse um anjo barroco de andar calmo e sorriso de muitos dentes. Andava por aí como quem nada queria, ou como quem nada podia além de andar e andar. Nas mãos, carregava sacolas de feira, repletas de verduras. No bolso, balançavam-se caixas de incenso recém-roubadas. No pescoço, pedras penduradas cadenciavam seu caminhar em uma sucessão infernal de baques.
Ninguém que passava por ele o notava, e ele se sentia confortável com isso. Conformado, na verdade. Não fazia nada para ser notado, isso era verdade. Andava por aí encolhido, como quem foge da chuva tentando passar por entre os pingos. Sua coluna, inclusive, já estava ficando encurvada por causa do seu andar desejoso de invisibilidade e das noites que passava recurvado sobre uma escrivaninha rabiscando palavras infrutíferas.
Mas ele bem sabia que não precisava ser assim. Por algum motivo, desde que se fizera gente pensante, sabia que nascera para ser visto, para ser ouvido. Sua mente era um turbilhão de teorias, pensamentos, imagens abstratas, e era desesperador que as pessoas não parassem para observar, atônitas, o caleidoscópio da mente humana que tão bem sabia ler e retratar.
Ele nutria certo ódio pelas pessoas que não o notavam, e às vezes, em resposta a isso, tornava-se apático e desinteressado, resoluto em fechar-se em seu mundo e privar a humanidade de tudo o que ele poderia oferecer.
Caminhava, aquele dia, pelo meio da rua sem carros devaneando sobre a mesquinhez do existir e sobre a terra que vinha de encontro ao seu cabelo a cada lufada de ar que o atingia. Chegava a poucas conclusões. Na verdade, raramente chegava a conclusões concretas, independente do objeto de devaneio. Seus pensamentos sempre acabavam inacabados, reticentes...
Sacudindo a cabeça, inconformado com... (Quem há de saber o mistério de suas inconformidades? Nem ao menos ele conhecia as profundezas de suas frustrações e caprichos), decidiu preocupar-se com o caminho que trilhava.
Chegaria logo a sua casa escura e pobre em mobília, deitaria no sofá e dormiria um sono profundo, mas que não lhe tiraria o cansaço e o peso que sentia aumentar a cada dia sobre seus ombros, e desperdiçaria mais uma das tardes de sua vida. Seu caminho era, então, reto em direção ao seu lar, reto até seu imutável rumo, ninho de inércia e asfixia.
Ele gostava de caminhar. Caminhar era uma das poucas coisas que o faziam sentir-se vivo. Ao caminhar por aí, fingia que desempenhava uma função crucial para o curso do mundo, e sentia-se tocado. Ele esbarrava em pessoas, escolhia frutas na feira, sentia o vento contra o seu rosto, e assim sentia-se parte de um sistema complexo de funções onde os ombros serviam ao propósito de por ele serem esbarrados, as frutas serviam ao propósito de por ele serem compradas, e o vento servia ao propósito de por ele ser amado e louvado diariamente.
Caminhar cansava as pernas, e isso o fazia sentir-se humano, ligado a terra. Vivendo em uma bolha, era fácil ver-se à beira de acreditar ser uma entidade livre de qualquer aspecto de humanidade. Muito já se vira surpreso por sentir fome, ou por adoecer como qualquer outra pessoa.
Caminhava por que era bicho criado em cativeiro, e gostava de sentir o gosto da liberdade nem que fosse um pouco, antes de voltar à sua gaiola e forçar em sua siringe mais um canto de melancolia juvenil.
Caminhava por que por trás da fachada entediada e do olhar blasé, escondia-se um garoto inquieto e curioso, perguntando-se a cada instante se hoje encontraria algo que tornaria o seu dia inesquecível.
De fato, praguejava contra a previsibilidade de seu percurso quando o viu.
Longe de ser um palhaço que se vê em circos,
Aquele que ali se via era daquele que se vê em sonhos
Em pesadelos, segurando facas,
Em filmes, comendo crianças.
Mas este palhaço, diferente do esperado,
Não causou nem uma fagulha de espanto no garoto
Que parou, estático, para admirá-lo
Enquanto talhava algum animal em um cubo de madeira.
Sentava-se entre o entulho,
Fronte uma casa em ruínas,
Era dos mais interessantes, ora
Onde já se vira um palhaço entediado?
Sua maquiagem já quase não existia
Além do vermelho do nariz, um pouco do preto dos olhos
Que escorrera pelo meio da face
Revelando que há pouco chorara.
O palhaço entediado tinha um cigarro pendendo da boca
E o fumava solenemente
Ora, ele fumava solenemente,
O quão interessante isso era?
O palhaço fumava e talhava animais em madeira
Enquanto tentava não chorar
E as pessoas que passavam por ele
Simplesmente pareciam não nota-lo.
Sua peruca estava caída no chão
Estava disposto a deixar logo de ser palhaço
Aquela vida já não lhe servia há muito
A vida deixara de servir-lhe há muito.
Seu cabelo longo balançava por aí
Negro como o escuro de sua alma
Às vezes escondendo seu rosto
Ele desejava que fosse sempre assim.
Ele desejava que seu rosto fosse maquiado pela última vez
E que essa maquiagem não saísse com a chuva
Ou que não escorressem com o sal da lágrima
Mas que o escondesse para sempre seu rosto
Para que as pessoas que esperavam ver em sua face um sorriso
Não vissem sua derradeira expressão de tristeza.
Era um palhaço solitário
E o quão interessante era isso?
Era um palhaço sem amigos,
Um palhaço que não tinha ninguém para fazer rir.
Na verdade estava cansado de fazer as pessoas rirem
Pois elas riam dele
E ele, de quê ria?
Ele não ria de verdade, pois não tinha com quem rir.
E então ele riu,
Ao finalmente entender uma piada que há muito lhe contaram.
Sacudiu a cabeça, devia ser uma piada idiota
Respirou fundo e afundou-se na melancolia novamente.
Exalou fumaça pelo nariz,
E sentiu prazer ao sentir a podridão do cigarro circulando dentro de si.
Fumar o fazia sentir vivo
Ou o deixava ciente da morte,
E a ciência da morte o direcionava ao viver.
Além do mais, fumar o fazia sentir-se bem
E extremamente atraente
De fato, o garoto sentiu-se de alguma forma atraído pelo palhaço
Havia algo na maneira que aquele desgraçado punha o cigarro na boca.
O palhaço suspirou e tossiu
Já passava quem sabe dos quarenta anos
Seus pulmões, quem sabe, já fossem sacos negros de sujeira
E o quão maravilhosamente interessante aquilo podia ser?
Talvez ele não tivesse mais uma vida inteira a sua frente
E talvez ele nunca mais deixasse de ser palhaço,
Por que talvez ele não soubesse fazer nada além disso
E tinha plena ciência desta sina.
Quem sabe fumasse na esperança de não ter que ser palhaço até os oitenta,
Talvez por isso também bebesse e cheirasse com um trapezista que conhecera em um circo romeno
Talvez por isso não conhecesse vacina, remédio, um médico
Por que talvez simplesmente não se importasse.
Um palhaço... um palhaço triste sentado à beira do entulho
O entulho nada mais era do que seu interior despedaçado
Ruínas de sua alma
Uma casa vazia ao chão...
O palhaço fitou o garoto, desinteressado, e garoto respondeu com o recomeçar de seu andar, hesitante.
Andava por aí com a cabeça doendo e por um bom tempo pensou no palhaço que acabara de ver, antes de, enfim, chegar a uma conclusão:
Era também um palhaço.
Dolorido de se pensar, mas também verdadeiro. Era um palhaço, e a camada de pó em seu rosto era grossa.
Seu coração doeu e seu estômago se contraiu. Parou ali mesmo onde estava, e antes que pudesse contê-las, sentiu lágrimas verterem pelos olhos e escorrerem pelo rosto.
Chorou imóvel e sem esboçar nenhuma expressão por algum tempo. Procurou sentir o vento batendo no seu rosto e secando seu choro e parou de prestar atenção na vertigem que parecia querer assomá-lo. Chorou por chorar, chorou por não ter mais o que fazer, chorou por que não o fazia há muito.
Tudo o que pesava em sua cabeça e tudo o que maculava seu coração escorreu pelos seus olhos naqueles poucos segundo de pranto. E as lágrimas queimavam em seu rosto, mas quando parou de chorar, notou que ele estava limpo.
Respirou fundo e voltou a andar.